Crônicas, contos e narrativas do passado, de gente que vive na ilha do Pico, ou estão espalhadas pelo mundo e tem muitas estórias para contar. Mande seu conto.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Eu sacristão.


Autor: David Avelar
Na década de sessenta do século passado com 10 anos de idade, por influência do padre Rodrigues, comecei a ajudar à missa, na igreja São Pedro Alcântara. Desde a época de catecismo que eu tinha verdadeira adoração pelos rituais da igreja. Os odores, os cânticos, o eco proveniente deles, os paramentos, tudo me atraía. Com facilidade aprendi os rituais litúrgicos. Responder à missa em latim, para mim, criança, era como falar a língua de Deus. Todos os dias, às seis da manhã, ou à noite às seis horas, ou às novenas, ao anoitecer o ângelus, acompanhava a perpétua, fazendo o trajeto da casa de meu avô, à igreja passando por minha escola, pelo hospital descendo a ladeira, desemboca no adro do majestoso edifício do Convento Franciscano, com a sua majestosa igreja anexa. Ali, na fria sacristia, preparava-me para abotoar umas três dezenas de botões, que compunham a minha batina sacristão. Depois preparava a água e o vinho, que iriam fazer parte da eucaristia. Em seguida me dirigia ao altar-mor, onde acendia as velas. Em dias de festa, a sala à direita, se transformava numa imensa floricultura, onde a Maria Fernandina, preparava com carinho, os arranjos de flores que iriam decorar os altares. Essa sala, dava para um pequeno cemitério clerical. A essas horas, o padre Rodrigues já se encontrava também nos preparativos para a a celebração da missa. Eu caminhava para a torre para tocar os sinos, com o toque das missas vespertinas. Haviam diversos dobrados, um para cada cerimônia. Casamentos, batizados, funerais, ângelus. Vinte e cinco toques de sino.
Em 1992, quando retornei a minha terra, com minha esposa, visitei a igreja com a avó Matilde e encontrei uma velha amiga de infância, Dolores Xareta. Quando voltei em 2004, vi que o altar da direita já tinha sido reformado, mas que a igreja ainda continuava no mesmo estado de abandono. O Convento na verdade fazia parte de um complexo, que por muitos anos foram instalados a Câmara, o Tribunal da Comarca da Ilha do Pico, as repartições de Finanças, a tesouraria da Fazenda Pública e a Conservatória do Registro civil e predial. Há que se fazer aqui, uma observação. No lugar chamado Cais do Pico, para mim um dos mais lindos da ilha do Pico, lugar onde nasci, é que se situam, até hoje, todos órgãos administrativos, do Concelho da Freguesia. Na verdade, São Roque é uma vila a mais ou menos uns 5 kms de distância. Ali situa-se a sede paroquial da freguesia. Um dos mais iminentes párocos, foi o padre Soares, do qual eu tinha muito medo. O padre Rodrigues, era uma pessoa muito especial, gostava de tomar seu vinho, fumar seu cigarrito. Sua marca favorita era gauleses, um cigarro francês, muito forte. Costumava sentar na varanda da casa de minha mãe alugada à paróquia, e ficar vendo-me brincar no quintal. Muitas vezes, ante a minha curiosidade sobre assuntos bíblicos, respondia de uma forma didática e de fácil entendimento, o que me levou a amar história e por conseguinte a Bíblia. Já no Brasil, soube que veio para cá, como missionário, morando em Santos-SP. Anos depois, faleceu de malária no Centro-Oeste do Brasil. Foi com imensa alegria e emoção que ao retornar em 2004, pude observar que a fotografia dele, se encontrava na entrada da sacristia, como uma homenagem póstuma, àquele que sem dúvida nenhuma, foi o melhor padre da nossa igreja.
Uma vez para sair da rotina enfadonha das manhãs das missas vespertinas em vez de colocar água e vinho, nas galhetas, para eucaristia coloquei água e água. No meio da consagração ao perceber a brincadeira, fitou-me com olhar maroto. No edifico do Convento no Inverno, funcionava o cinema-teatro, num salão do rés-do-chão e a cadeia da Comarca, que de vez em quando abrigava incauto, preso na maioria das vezes por ter tomado um copo a mais.
Mas uma das minhas grandes aventuras da igreja, foi quando perto da Semana Santa, ao retirar os panos para cobrir as estátuas e as janelas descobri atrás do altar-mor, uma porta que dava para uma caverna. Atrevi-me a descer os degraus de pedra, mas ao ver o primeiro esboço de uma caveira, voltei correndo e fui contar para padre Rodrigues. Ele com cenho franzido ralhou comigo e me pediu para esquecer o que eu tinha visto. Anos depois conversando com o meu avô, ele me contou que, provavelmente, o que eu tinha descoberto era real, pois numa só noite, 3 de Setembro de 1759, quando o Marquês de Pombal expulsou jesuítas, os monges que ali viviam sumiram, provavelmente tendo acesso ao mar por essa caverna. Em 1992 conversei o meu primo Norberto Medeiros que vivia da pesca lagostas e cavacos, de mergulho e que também confirmou que já tinha tido acesso a essa caverna, na maré baixa. Se é verdade ou não, isso ficou na minha memória de criança, como um fato inusitado. Outra lenda e essa sim, é uma lenda, é que os monges tinham um tesouro guardado num dos pilares das escadas de acesso, ao segundo andar do monastério, onde havia realmente um bojo da sua base, mas se alguém tentasse quebrar aquele pilar, toda a arcada de pedra de acesso ao claustro, ruiria. No centro do adro, ainda se encontra a cruz de pedra, onde tantas vezes eu brinquei. Eu roubava as hóstias e celebrava missas de mentirinha, ali em frente àquela cruz. Espero ainda ver um dia a minha igreja. O mais engraçado, é que mesmo com toda a riqueza de ouro, prata, marfim e ícones religiosos, a igreja estava sempre aberta. Os trabalhos de entalhe em madeira de lei brasileira, feitos a canivete segundo consta, destacando-se principalmente as gavetas da sacristia onde se guardavam os paramentos. O Ostensório e o Turíbulo de prata, a magnífica Cruz Processional. Recordo-me da preocupação em manter a lamparina vermelha, situada ao centro da nave principal em frente o altar-mor, sempre acesa. Uma bóia de cortiça flutuando sobre azeite, fazia com que o pavio se mantivesse à distância certa do azeite e queimasse eternamente. Este conto também é uma homenagem póstuma, àquele que foi meu mentor espiritual. Padre Rodrigues. Tal foi sua influência, que vim para o Brasil aos 13 anos, com a intenção de seguir a carreira eclesiástica. Ainda freqüentei o Seminário São Vicente de Paula, em Petrópolis. Mas ao ver o sincretismo religioso e as lindas mulheres deste país, cheguei à conclusão que, certamente, seria um péssimo padre. Aqui constituí uma família linda. Hoje tenho uma amada esposa, com quem vivo há 33 anos, sou pai de duas filhas maravilhosas e tenho uma neta que é minha princesa. Dádivas de Deus.
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